domingo, 18 de maio de 2008

OLHO NO LANCE

Com as luzes do meu quarto apagadas eu aguardo ansioso a entrada de algum dos meus poucos contatos do MSN. Todos sobreviventes da minha lista de condições básicas pra teclar, (uma delas é evitar abreviações como tc, ou rs e jamais usar emoticons). Lá pelas tantas, sem mais o que fazer a não ser esperar, sou tomado de assalto por uma espécie de jogo colocado na parte de cima do meu Messenger: uma disputa de pênaltis entre dois bonecos. O objetivo é óbvio, vencer o goleiro e – pra usar um clichê futebolístico – estufar a rede.

Uma chamada luminosa pedindo a cobrança da penalidade me fez arrastar o cursor do mouse até a seta que lançaria a bola pro lado esquerdo. Um clique e lá estava o goleiro. Filho da puta – pensei, enquanto respirava fundo e repetia o canto, dessa vez com sucesso. Mas, antes mesmo que a sensação de satisfação chegasse ao meu cérebro, uma mensagem de que aquele gol havia me levado a um prêmio me deixou com um pé atrás.

Antes de entrar no site com a tal recompensa, decidi voltar pro tal joguinho. Pra tanto tive que me desconectar do MSN. Tudo como sempre. Iconezinhos girando e girando até que, pumba, lá estava eu, de frente pro gol. Olhei pro canto esquerdo. Olhei e bati do lado contrário, (como se com essa artimanha eu pudesse enganar o goleiro). Que nada, lá estava ele novamente com a bola nas mãos ao mesmo tempo em que o anúncio de “você errou, tente novamente” começou a piscar. Não é necessário dizer que fiz de novo a coisa toda. Mesmo canto e gol. Gol e mensagem de premiação.

O que eu quero dizer com toda essa história é bem simples. Os caras sacaram tudo. Não sabemos mesmo lidar com nossas frustrações. Queremos o sucesso a qualquer custo. No caso das cobranças de pênaltis, em todas as vezes, a primeira – qualquer que fosse o lado escolhido – , a primeira era do goleiro e a segunda – sempre – terminava em gol. É nada, se pensarmos nisso como apenas uma maneira quase inocente de que alguém entre num site e como prêmio tenha uma série de ringtones à sua disposição, (é, eu entrei lá depois pra conferir), mas essa pode ser uma questão sem precedentes, tal o modo como somos envolvidos.

Ao finalizar a experiência, cheguei à conclusão de que aquilo era pura manipulação. Fiquei ali pensando em tudo aquilo quando uma janelinha brotou no canto inferior da tela informando que alguém, finalmente, havia entrado no MSN. Puxei conversa como de costume e decidi dividir minha perplexidade. Contei tudo, tim-tim-por-tim-tim, sem deixar de colocar minha indignação ao final de cada frase. Mas, tudo o que tive ao término da minha explanação foi um: rsrsrsrsrsrsrs e um contato a menos no MSN.

Minha lista de condições básicas pra teclar, assim como a minha indignação, é realmente implacável.



ao som de Soccer Pracctice do JOHNNY MAC GOVERN

sábado, 17 de maio de 2008

FOI NUM RISCA FACA QUE EU ME CONHECI

As instruções parecem saídas de um Manual de Instruções para os visitantes da Reserva Nacional dos Gorilas em Odzala, no Congo: nunca olhar diretamente nos olhos de um macho, evitar ficar próximo de qualquer fêmea a menos de cinco metros de um eventual parceiro e em hipótese alguma – ainda que sutilmente – tocar no corpo de qualquer indivíduo do grupo. Geraldo Campos de Macedo, um senhor bonachão na casa dos cinqüenta, repassa os alertas enquanto estaciona seu táxi em frente ao Tradição Danças. “Estou aqui desde 1986, quando isso aqui ainda chamava Forró do Pedrinho”, conta. Localizado na parte superior de uma loja de móveis e ao lado de uma igreja pentecostal, o “Pedrinho” teve sua fama assegurada por ter sido o primeiro espaço dedicado ao forró no ABC. “Já vi de tudo por aqui. Namoro, casamento e morte” Sem dúvida seu Geraldo sabe como usar as palavras, o que faz com que eu titubeie logo no primeiro degrau de uma escadaria enorme. Um segurança me faz um sinal entre o apressado e o grosseiro e assim, sou obrigado a deixar uma vida mais amena do lado de fora da casa.

O ritmo nascido no nordeste no começo do século XX, encontrou terreno fértil em São Bernardo do Campo no ABC paulista, cidade que após década de cinqüenta, poucos anos após sua emancipação, (ocorrida em 1 de janeiro de 1945), abriu suas pernas para uma leva de imigrantes que chegavam pra ocupar os postos de trabalho na construção de um parque industrial voltado para o que viria a ser tempos depois, o principal pólo automobilístico e moveleiro do País. Para a maioria, a chegada representava uma – ou talvez, a única chance de uma – luz no fim do túnel.

A primeira visão do lugar em si é tenebrosa. O único ponto de luz vem de uma pequena lâmpada vermelha localizada próxima ao palco. O som – se é que se pode chamar aquela sucessão acelerada de acordes desafinados e o burburinho, de som – é de dar medo. Ao meu lado um casal tenta em vão engatar uma conversa. Aos poucos meus olhos conseguem se adaptar à escuridão e meus ouvidos decodificam uma melodia: Tô Ligando Amor, uma versão com rachaduras nos pés e chapinha para A Little Respect do Erasure, reverbera pelas paredes cheias de anúncios sobre os próximos shows da casa. Todos, sem exceção, parecem se divertir apesar do cheiro de suor transcender os limites do aceitável para qualquer nariz normal. Os sorrisos se multiplicam em um sem número de dentições incompletas. Essa parece ser a minha deixa. No melhor estilo “vocês-vem-sempre-aqui?”, me aproximo de uma garota com um grande copo plástico abastecido com cerveja. Minutos depois, entre perguntas e respostas gritadas ao pé do ouvido sei de boa parte de sua vida.

Paraibana de Santana dos Garrotes, Rosângela é freqüentadora do “salão”, como costuma se referir ao “Pedrinho”, desde os dezesseis. Foi ali que, em meio ao compasso de dois pra lá e dois pra cá, conheceu seu primeiro marido, Antônio, pai de seus dois primeiros filhos. Hoje com 32 anos, tem em sua conta um saldo de dois casamentos, quatro filhos e um neto. “Aqui conheço todo mundo. Sei quem é bom e quem não é”, dispara ao mesmo tempo em que passa a mão no ar pra mostrar que todo mundo é todo mundo, mesmo. De fato, Rosângela é mesmo, muito conhecida por ali. Ao lado dela fui convidado – às vezes a contragosto – a cumprimentar muita gente. Ao nos deixar, cada pessoa recebia dela um carimbo em forma de adjetivo. “Essa é rapariga. Esse é bom rapaz. Esse é ladrão. Gosto de dançar com esse. Essa me deve dinheiro”.

Durante o festival de beijos e apertos de mão, fui apresentado à Maria da Conceição Rosa Bispo, ou a Maria do Foguinho. “Você deu sorte. Não é sempre que eu subo pra dançar”, conta Maria, ao mesmo tempo em que se apresenta e alimenta minha curiosidade. Maria do Foguinho recebeu essa alcunha desde que montou o seu negócio – uma churrasqueira de onde brotam colunas espessas de fumaça – às portas do “Pedrinho”, em meados da década passada. “A pessoa que vem no ‘Pedrinho’ tem que comer pelo menos um espetinho meu”. Senão? “Senão, não pode falar que veio, ué”. Essa condição me assustou e resolvi escapar enquanto ainda podia, inventando uma vontade incontrolável e repentina de ir ao banheiro. Não é preciso dizer que não havia tijolinhos dourados no caminho que levava ao sanitário. Nem pássaros. Nem flores. Mas, de certa forma, havia mais luz do que no restante do salão; o que me permitiu perceber que o lugar era na verdade um cubículo ao final de um longo corredor com as paredes marcadas pela umidade, o chão recoberto por lajotas geladas de ardósia negra e recheado pelo barulho dos bacilos de Koch surfando as ondas de ar vindas da tubulação e pelo cheiro enjoativo de mijo datando à gerações. Nada de cabines, com uma privada cada. Todo produto dos litros de cerveja consumidos era despejado numa vala comum, na frente da qual você tinha que se posicionar cuidadosamente para que seu pé não arremetesse buraco adentro, e onde você teria que dividir o espaço com um sujeito brutal de cada lado lançando jatos de urina que mais pareciam tiros de raio laser.

Com algum sacrifício duas ou três gotas de urina brotaram da ponta do meu pinto. Era como se uma missão de guerra acabasse de ser cumprida. E vamos combinar, numa situação dessas quem ficaria ali pra saber se a coisa foi convincente ou não? Fiz todo o caminho de volta andando a passos rápidos, como se, de algum modo, tivesse memorizado cada centímetro do percurso. Logo estava de volta à pista onde Rosângela ao lado de um negro imenso me recebeu.“Este é o Laurivan”. Laurivan era um sujeito daqueles que respira com a boca entreaberta, o que confere um certo ar boçal a tudo o que ele venha a realizar. Fui apresentado como “o moço da revista” o que pra ele soou meio afrescalhado. Quando sua mão subiu, me senti em meio a um assalto. Seus dedos eram como o cano de uma arma de fogo. Apontavam pra mim, ameaçadores e aguardando algum peso proveniente do meu cumprimento. Fiz um esforço sobrenatural pra ao mesmo tempo em que apertasse aquela mão, (repleta de sulcos abertos pela ação cáustica do cimento de alguma obra onde Laurivan repousava sua colher de pedreiro e assobiava, como um maldito e inumano poço de testosterona, para colegiais indefesas se protegendo com seus fichários), ao mesmo tempo pudesse parecer o mais viril e natural possível.

Quando era menino, na fila da Montanha Russa, eu tentava calcular o tempo da queda do carrinho pela descida mais vertical. Eu estipulava poucos segundos e isso sempre me fazia tomar coragem e fixar minha bunda magra de adolescente no assento de couro rasgado daquela navezinha de fibra de vidro multicolorida. Entretanto, sempre a coisa se desenrolava de um jeito contrário a tudo aquilo que eu havia desejado.

Inexplicavelmente, havia um paradoxo temporal entre o momento em que eu estava fora e aquele onde eu me encontrava a bordo. Segurando a mão daquele homem, torcendo pra que meus tendões suportassem a pressão, eu era novamente um adolescente bobo mascando chiclete e mentindo pra mim mesmo sobre como toda aquela história ia passar tão rapidamente quanto eu calculara. E antes mesmo que eu pudesse me recuperar da tensão fornecida por um momento como aquele, Laurivan, com um grunhido, me ofereceu um copo cheio de um líquido escuro e fedido. Eu nunca havia repetido uma volta na Montanha Russa num mesmo dia. E não seria aquela, a primeira vez.

A coisa com o namorado da moça de Santana dos Garrotes é que era evidente que eu não era o tipo de cara forte o suficiente pra entrar de cabeça em experiências como aquela. Eu havia tido um contato intenso com um nicho que não era o meu. E isso não tinha nada a ver com ser melhor ou pior do que a turma do “Pedrinho”. Eu provavelmente poderia, enfrentar os mesmos questionamentos sobre o que comer sem muita grana, ou como eu poderia fazer pra que a minha vida fosse de alguma maneira mais cômoda e não tão sacrificante. Mas o que pegava, era que eu havia invadido um espaço que não me pertencia. Eu ainda era capaz de conjugar sem constrangimento, verbos que Rosângela, Laurivan e Maria do Foguinho, sequer sabiam existir, e não porque quisessem que fosse assim. Não se tratava de uma opção. Acho, que se trata mais, de não ter como escolher. E quando com um sorriso, não pude aceitar o ultimo teste de masculinidade imposto pelo gigante Laurivan, dizendo que tinha mesmo que ir e por isso não podia aceitar encostar a boca num copo com alguma substância desconhecida que só um bravo sorveria; ali naquele momento eu soube mais do que nunca que o caminho de volta seria tranqüilo, pois cada lado festejou sua vitória. Laurivan acompanhado de sua amada e eu acompanhado de alguém sentimental e razoável como eu jamais suspeitara que eu podia ser.



ao som de Beije-me Cowboy do ARTE NO ESCURO